Um bom agricultor sabe bem que o aproveitamento da sua colheita é diretamente relacionado com o clima nas semanas seguintes à plantação. O plantio no tempo certo, com chuvas oportunas e a ausência de eventos extremos são praticamente garantia de um bom lucro no futuro. Um investidor na bolsa de valores seria muito bem-sucedido se soubesse as variações de mercado nos meses seguintes. Assim também é com o jovem solteiro que anseia o casamento, com o estudante que não sabe qual faculdade escolher, ou com o pai de família diante de uma grande decisão financeira. Em todos esses casos, nos encontramos diante de decisões (ou ações) imediatas que seriam muito melhor desenvolvidas se soubéssemos algo sobre o futuro.
Esse desejo de conhecer situações futuras não é de hoje; a maioria das religiões do passado possuíam alguma divindade relacionada com fertilidade (que estava associada não só com o nascimento de filhos, mas também com a produtividade agrícola). Nesse contexto, sacrifícios eram realizados em troca da garantia de sustento futuro, num reconhecimento de que o homem por si só não poderia mover as circunstâncias de modo a garantir tudo aquilo que ele desejava. E é bem possível que esse seja o motivo do sucesso de horóscopos ainda nos dias de hoje: ansiamos por algo que nos mostre o futuro, não apenas por curiosidade, mas para agirmos de maneira a não tomarmos decisões que nos levarão por um caminho ruim.
Essas práticas parecem distantes do nosso contexto como cristãos. Mas se pensarmos um pouco, vemos uma dinâmica parecida quando pessoas começam a falar sobre “buscar a vontade de Deus”. De fato, existem maneiras piedosas e não piedosas de querer saber a vontade de Deus; podemos querer saber qual atitude agrada a Deus, ou simplesmente querer saber o futuro como um horóscopo, com o objetivo de ter alguma garantia sobre o futuro por meio de uma revelação particular. Nesse tipo de conversa, é típico ouvirmos algo como: “Com qual pessoa Deus deseja que eu me case?” ou “Qual trabalho Deus deseja que eu aceite?”. Mas note que motivações legítimas (como a busca do casamento ou de um emprego) podem esconder um coração ansioso, que deseja garantias de um futuro certo, de um empreendimento bem-sucedido.
É exatamente com esse problema que R. C. Sproul lida em mais um livro da série Questões Cruciais, e é ele que vamos explorar neste texto. Mas a pergunta: “Posso conhecer a vontade de Deus?” exige clarificação; aquilo que chamamos de vontade pode ter diversos significados, o que nos impede de formular uma resposta simples. Essencialmente, existem três possíveis vontades, e vamos tratar das duas principais neste editorial.¹
A vontade decretiva de Deus
A vontade decretiva é usada como sinônimo da vontade soberana e eficaz de Deus. É por meio dela que Deus efetua tudo aquilo que deseja no mundo, e nada pode se interpor entre essa vontade e o seu fiel cumprimento. Exemplos práticos dessa vontade podem ser vistos na Criação (Gênesis 1), na promessa do Messias (Gênesis 3), ou mesmo na predição do cativeiro babilônico (Isaías 39.5–8) — Deus falou, e Sua vontade foi cumprida. Ela também é vista de maneira explícita em declarações como a de Davi no Salmo 139:
“Meus ossos não estavam escondidos de ti quando em secreto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos viram o meu embrião; todos os dias determinados para mim foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir.”
(Salmo 139.15 e 16)
Um dos maiores perigos ao tomarmos consciência dessa realidade é recairmos num fatalismo. No entanto, é importante lembrarmos que Deus cumpre Seus planos por meio das nossas escolhas também. O fato é que podemos escolher, desejar e agir, como fazemos de maneira prática no nosso dia a dia. Mas Deus ainda cumpre Seus propósitos por meio, e às vezes apesar, das nossas escolhas. A soberania de Deus não exclui a responsabilidade humana (veja o primeiro editorial dessa série – Deus Controla Tudo Mesmo?), mas a vontade decretiva de Deus nos diz que há um Deus soberano que faz valer a Sua vontade, e que a minha vontade é sempre submissa à dEle.
A vontade moral ou preceptiva de Deus
A vontade moral de Deus compreende tudo aquilo que Ele nos ordena; assim, quando a Bíblia nos chama à obediência à Lei de Deus, ela nos chama a nos alinhar com a vontade moral de dEle. Essa vontade de Deus é fácil de ser encontrada na Bíblia: basta olharmos para os livros de Êxodo e Deuteronômio (no contexto da nação de Israel), ou para os capítulos de aplicação nas cartas do Novo Testamento (veja, por exemplo, Efésios 4–6).
Note que a vontade moral é encontrada claramente na Bíblia, enquanto a vontade decretiva de Deus nem sempre é revelada. Ao mesmo tempo, enquanto a vontade decretiva de Deus não pode ser quebrada, a vontade moral de Deus pode² — é isso que a Bíblia chama de pecado.
E é aqui que muitos de nós falhamos: temos uma preocupação demasiada com a vontade decretiva, que não temos como saber, e um descaso com a vontade moral, que nos é revelada e que fomos chamados a obedecer. Nessa situação, é importante lembrarmos que somos passivos em relação à vontade decretiva, mas ativos na vontade moral! Somos responsabilizados pelo que fazemos com a vontade moral revelada, não por aquilo que Deus definiu de antemão, mas não nos revelou.
E qual é a vontade de Deus para a minha vida?
Aplicações diferentes podem ser tiradas das definições acima, dependendo do seu contexto. Em primeiro lugar, se você não crê em Cristo como Senhor e Salvador, a vontade de Deus para você hoje é que você se arrependa e creia no Evangelho:
Pedro respondeu: “Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo para perdão dos seus pecados, e receberão o dom do Espírito Santo. Pois a promessa é para vocês, para os seus filhos e para todos os que estão longe, para todos quantos o Senhor, o nosso Deus, chamar”.
(Atos 2. 38 e 39)
Não há nada no seu futuro que seja mais importante que isso. Neste único chamado reside a segurança de uma eternidade de júbilo com o Senhor. Se você já respondeu a esse chamado, o pensamento sobre qual é a vontade de Deus sobre a sua próxima decisão já deve ter passado pela sua mente. Nesses momentos, somos chamados a agir não como incrédulos, tentando adivinhar a vontade decretiva de Deus, mas como crentes piedosos pedindo orientação sobre decisões alinhadas com a vontade moral de Deus; qualquer decisão fora disso deve ser descartada.
Qualquer que seja o contexto, a vontade de Deus revelada para nós é que andemos em santidade enquanto peregrinamos nessa terra (1 Tessalonicenses 4.3). E nesse processo, nosso maior problema não é saber a vontade decretiva de Deus, mas lutar contra as nossas próprias vontades pecaminosas (Romanos 7.7–25). Porém, nossa obediência à vontade moral é alimentada pela vontade decretiva, pelas promessas de Deus que não falham (1 Pedro 1.3–25; Romanos 8.28–39).
É consolador saber que a vontade de Deus vai sempre ser cumprida, que Ele sempre planeja o melhor para nós, que Ele mesmo nos dá força na luta contra o pecado, e que Ele nos guardará até que estejamos para sempre com Ele.
Editorial baseado no livro “Posso conhecer a vontade de Deus? – Série Questões Cruciais”, de R. C. Sproul, publicado no Brasil pela Editora Fiel.
Editorial de Petrônio Nogueira
¹ A terceira vontade é chamada por Sproul de “vontade de disposição de Deus”. Ela se refere àquilo que é agradável a Deus, e tem relação com a resposta de Deus às Suas criaturas. Em outras palavras, ela alude a fatos que alegram ou entristecem a Deus. Nisso se encaixam 2 Pedro 3.9 e Ezequiel 33.11. Deus se alegra quando a justiça é mantida, e a retidão é honrada, mas Ele não tem prazer na aplicação de punição.
² A Bíblia também narra situações em que os personagens agiram de acordo com a vontade decretiva de Deus, mas contra a sua vontade moral. Dois exemplos claros disso são as histórias de José (veja Gênesis 45) e do próprio Jesus (veja Atos 2.22–36). Nessas situações, pecado ainda é chamado de pecado e é julgado como tal. Mas Deus ainda tira o bem do mal para cumprir os Seus bons propósitos (Gênesis 50.20).
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